como sombras e cavalos a levitar

O romance como sombras e cavalos a levitar é parte do conjunto de três livros que compõem a colecção ARREMESSOS, publicada em Portugal pela Editora Exclamação e, em Moçambique pela Cavalo do Mar durante o ano de 2023.

Os três livros foram escritos durante a pandemia, são fruto partilhas de referências literárias e reflexões sobre o estado das coisas em Moçambique e no mundo, levados a cabo pelos autores, numa relação à distância, mas fecunda de presença.

Excerto do romance

I. 

Saí dali como se me escapasse do cérebro uma substância tóxica. Gases num combate contra os pulmões. Minha cabeça era um barco, cheio de carvão. Um barco a vogar no meio das ondas. Longe, os chumbos de calor destruíam os edifícios da cidade, face a face, curva a curva. Nas fachadas a expressão triste de quem reza. Meu corpo, frágil, rã escorregadia em mãos cáusticas. Dentro, os ossos se esbatiam numa bruma difusa, contraditória; o som minúsculo da flauta atormentava-me o pensamento com mestria de rato que escala a clavícula.

No ombro, o corpo quente da prostituta, débil, ensanguentada, os movimentos dos seus braços flácidos contrastavam com os repuxados nervos dos meus pés. Era o fim. A flauta silenciada sobrou de tudo quanto houve, de tudo quanto ficou destruído, de tudo quanto um dia virá, das horas de sal, do temor, da dor incómoda, da voz aos solavancos a cavalgar, a infiltrar-se pulmões adentro, a subir garganta afora.

Levo a prostituta para todo o lado, para que o mundo veja que o amor pode agarrar-se ao cu de um porco ou ao ramo de uma florzinha branca, delicada, num jardim onde cabe apenas o silêncio. Levo-a no ombro, hino que sobra quando se vence uma batalha rija.

Corpo morto torna-se pesado. A prostituta levitante, uma hóstia, écharpe ao vento se encarniça vindo do mar inquieto. «O teu enterro será digno. Com flores e canções. O teu enterro será digno. Com padre e harpas. No teu enterro se vai chorar como se chora a uma santa. E todas as mulheres são santas!», pensava, só, minhoca no seu covil, no escuro e silencioso orifício. Na humidade absoluta da terra.

Nunca há culpado para estas coisas. O universo acontece, empurra-nos, como empurra um velho automóvel que, devagar, cria sulcos em terra húmida, e logo a seguir abate-se a chuva, tudo é diluído, sobram apenas os gatos na margem da rua; naquele relance felino, à espera de que tudo escureça para se atreverem a patear medrosos.

O seu nome era Esmeralda. E foi precisamente para aí que o universo me conduziu, para esse relâmpago imprevisível. Os braços no balanço musical, os caminhos estreitos para tudo aquilo. Seu nome era Esmeralda. Está frio dentro de mim. O sangue é gelado, os ossos combatem. Seu nome é Esmeralda. A renite é crónica e respiro em oração, a mendigar por oxigénio. Seu nome é Esmeralda. A canção suave é ódio, os corpos acotovelam-se na vala comum do cemitério, o vento é forte, a voz aguda a imitar a impaciência do sino, as borbulhas crescem e o pus é asqueroso. O Seu nome é Esmeralda, e não há ombro que se canse quando ela adormece.