Névoa na Sala

Um homem acaba acidentalmente nas trincheiras de uma guerra, no norte do país. Um morto fá-lo regressar. O pai espera-o à porta. Os fantasmas da guerra perseguem-no, no seu íntimo. Passa, por isso, parte da sua vida num hospital especializado em traumas e depressão, onde se apaixona por uma mulher que procura curar a dor de tentar conceber, poeta talentosa que esconde um mistério debaixo da cama. Ele terá de descobrir, mas também de aprender a lidar com a cisão de um profundo amor.

Névoa na Sala é um romance experimental que rema contra a maré e gravita entre os traumas da guerra, a força do amor e da depressão; interroga o que pode um morto quando regressa, revisita memórias e procura descobrir o que de poderoso pode habitar o coração do Homem.

Excerto do romance

As vozes dos que matei estão aqui. Aqui na minha cabeça. Aqui, entre o salto da rã e o desmaio de uma cabra. Sempre que sorrio, estou absolutamente perdido entre o recto e o intestino do cavalo.

Procuro libertar-me, em troca, as vozes. As vozes aqui, vocês podem ver? Aqui, no tímpano, os homens correm, aqui, nos meus olhos, as mulheres, as crianças, gritam, choram. Os bois se dispersam no comportamento dos vermes, os caprinos vagam pela savana, os patos e as galinhas arrastam-se no meio do vulto. O sangue irrompe desesperado no comportamento animal. Os gestos aflitos de quem vai morrer. Não. De quem eu ia matar. Empunhava a arma e eles;

— Por favor não me mata, por favor, tenho filhos pequenos, por favor, por favor, por favor — e eu atirava impiedoso, ouvindo as vozes se dispersarem logo a seguir e os pássaros em debanda arrastarem consigo as sombras inúteis. À noite punha-me a chorar — remorsos, à noite doía-me o peito e a garganta como uma cegonha. Os pulmões encharcados no sangue do disparo. Desfazia uma porta, gritava, o homem respondia, disparava. Incendiava. À noite, os corvos de merda que cantavam como santos ou diabos, as vozes vinham, o fogo em brasa. Os corvos cantavam até os galos cacarejarem. Os corvos, de galho em galho sem interromper o cântico nocturno, como se soubessem de tudo e tivessem visto tudo. Cantinho batia-me com relativa força nas costas no meio da madrugada, ou pela manhã. Era mais perigoso sonhar pela manhã:

— Quem te vai matar, companheiro? — porque esperneava. Sonhava em combates. As duras noites. Levantava-me à procura da arma para apontar para nada. Apontava para o silêncio da bruma, enquanto os outros sonhavam a capinar nas suas machambas, quando os outros sonhavam com os seus filhos e suas amantes, quando os outros combatiam uma parte do dia e noutra descansavam, quando uns sonhavam a casar e a foder com as mulheres que sobreviviam desesperadas, eu, eu lutava nos sonhos. 

— Estás a falar merdas, procura descansar porque amanhã pode ser mais duro.

— Eu... eu estava a sonhar?

— Estavas a falar merdas!

E pedia desculpas, pedia muitas desculpas, não era por mal, não era porque queria sonhar aquilo, era porque queria voltar para casa, mas não podia dizer, porque quem falava era morto. Os sonhos ficavam recorrentes. Eu só queria regressar para casa, assim como cada um de nós ali, queria sentar-me à sombra e ouvir os pássaros cantar no nosso quintal. Abraçar meu pai. Lembrar-me das mãos da minha mãe e jantar à mesa com o meu pai. Queria a sombra fria do canhoeiro do nosso quintal, as matomanas a caírem numa rigorosa sintonia, as vozes da vizinhança que nos assombravam, uma espécie de música estridente, porque essa gente falava como se cantasse e nunca faltasse palavra, e quando eram tantas, criavam uma melodia que, sentindo falta, fazia-me chorar. 

E Cantinho gritava recorrentemente:

— Homem não chora! Homem não chora! Cresça, merda!

— Homem não chora, faz o quê?

— Luta!